terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Peixe Grande

Quando completei meus 26, ganhei de minha namorada um peixe.
Me deu outras coisas, é claro -- mas, de todos os presentes, o que verdadeiramente me intrigou foi esse. De início, ri da brincadeira e procurei me divertir. Mas o que era, para ela, alguns trocados e um bichinho colorido, passou para as minhas mãos como uma responsabilidade. Afinal de contas, quando as risadas passaram, tornei eu a ser o responsável pela vida daquele ser. Era minha a responsabilidade de alimentá-lo, trocar sua água e zelar pela sua vida. Ele não poderia, sob hipótese alguma, sobreviver sem mim daquele momento em diante.
Me preocupava a idéia de que outro ser dependia da minha disciplina e pontualidade para viver. Tinha um cachorro também, mas esse não era indefeso; não era frágil, e embora precisasse que eu ou outra pessoa o alimentasse, parecia verdadeiramente necessitar muito mais da minha presença amiga do que da própria comida. Já ficou sem comer certa vez, mas ao me ver, chorou de saudades e não de fome. Já o peixe não demonstrava afeto algum: ou nadava, ou ficava parado -- e só. Não sorria, não chorava. Só sabia que estava vivo quando se mexia. Incomodado, lamentei com os amigos que ela havia dado uma responsabilidade e não um presente, ao que eles prontamente responderam que aquele peixe não durava muito tempo. "Vai morrer já já", disseram. Por vezes pensei em o devolver a ela, mas não o fiz na certeza de ela ficaria muito triste. Talvez gostasse mesmo de saber que lembrava dela todas as vezes ao cuidar do peixe.
Quando ficava longe de casa, lembrava do meu amigo canino e jamais deixava de ligar e pedir pra alguém alimentá-lo na minha ausência. Nossa amizade era grande, de modo que mesmo longe, ele estava em meus pensamentos. Que dizer do peixe, todavia? Confesso que esquecia dele. E todos diziam que ele morreria se ficasse sem comida um dia sequer. Talvez poderia morrer em horas de jejum. 
Acontece que o peixe não morria. Ele simplesmente não morria.
E tornou-se quase uma brincadeira voltar pra casa e, subindo as escadas, olhar o aquário de longe, tentando adivinhar se o peixe ainda estaria vivo ou se teria encontrado seu destino. Às vezes o via parado e pensava "morreu"; mas era só se aproximar, dar um peteleco no aquário e ele despertava do seu sono, movimentando sua bela cauda pra mostrar que não tinha, ainda, ido. E assim o tempo foi passando… dias, semanas, meses. E lá ele permanecia, intrépido.
A persistência do peixe era tamanha que só era possível atribuir sua imortalidade a algo sobrenatural. E, assim, em tom de brincadeira, começou a se dizer que o peixe representava meu amor pela minha namorada -- que, desse modo, um só morreria quando o outro morresse, e vice-versa. Uma coisa certamente absurda. Tão absurda quanto o peixe imortal.
Quando menos percebi, já estava fazendo comparações do peixe com minha relação. Como sobrevivia com tão pouca comida? Com tão pouco amor? Sem um objetivo, sem uma motivação? Via o peixe em seu aquário quadrado e pequeno e não podia deixar de perceber como minha relação era, também, cerceada bem de perto.
Mas todas essas coisas não me incomodavam mais do que a apatia do peixe em si. Certa vez, enquanto trocava sua água, eu e meus amigos brincamos com a idéia de coloca-lo na piscina ao invés de de volta no aquário. Mas ao ver sua expressão conformada, mesmo num copo de requeijão, esperando o aquário ficar limpo , não poderia jamais acreditar que morar num aquário maior o faria mais feliz. Penso que nem saberia o que fazer com tamanha liberdade, e que fatalmente ficaria parado no mesmo lugar.
 Embora a apatia do peixe me incomodasse, não era suficiente para que eu o matasse ou o destratasse. O mesmo não pôde ser dito quando ao meu namoro, todavia, que acabou durando muito pouco. Segundo ela, acabou porque éramos muito diferentes -- e éramos mesmo, desde o primeiro dia, mas isso não mudou com o tempo. Disse que não seríamos felizes juntos, porque eu não seria feliz do jeito dela e nem ela do meu. Já na minha opinião, na ocasião, acabou porque não poderíamos ser felizes com tão pouco espaço. Porque nos faltava liberdade, e porque ela não se permitia ser ela mesma com tantas restrições em sua vida.
 Hoje sei que estávamos, os dois, redondamente enganados.
E, assim como o nosso sentimento, o peixe também não morreu. Ao contrário, permaneceu firme, dia após dia, mesmo com o fim da relação. E ver, alimentar e cuidar do peixe me incomodava, porque quando olhava pra ele lembrava de nós e da nossa apatia diante de uma imensidão de possibilidades. Aliás, nossa não. Eu desejei o fim por saber que aquilo não era pra mim -- e comecei a ver que talvez o peixe fosse ela, e não eu. Eu não era apático. Eu não era conformado. Eu não me contentava no meu pequeno aquário. Eu queria mais. E queria, sim, mais com ela -- queria que ela fosse comigo, mas ela não veio. Simplesmente ficou parada, congelada pelo medo.
Os dias se passaram e, embora eu a evitasse diariamente, torcia para que me achasse. Não sabia exatamente por que, se nem ao menos certeza que gostava dela eu tinha. O que era inquestionável em mim, no entanto, era uma esperança maravilhosa que ela, de um dia para o outro, desejasse verdadeiramente o amor. Torcia para que viesse ao meu encontro com os olhos brilhando dizendo coisas novas, na certeza que seríamos imensamente felizes se ela se permitisse. Minha esperança de que ela vencesse sua confortável apatia e quisesse ser feliz era muito grande; mas, assim como o peixe incitado pelos meus petelecos, ela só dava sinais vitais. Sinais de coma, talvez.
Foi então que ontem, após quase dois meses do término, dizemos adeus um ao outro. Esperava que ela tivesse desabafado sobre tudo, mas ela se manteve fria e distante, falando de um grande carinho que sentia por mim. Acontece que eu queria amor, droga. Encerrei meu dia, trocando a água do peixe e o alimentando, me questionando por quanto tempo eu teria que lembrar dela ao cuidar daquele peixe. Tive muita vontade de devolvê-lo, pra que ela lembrasse de mim todo dia e não o contrário. 
Hoje o alimentei pela manhã, como qualquer outro dia. E, como qualquer outro dia, voltei à noite -- só que não olhei das escadas pra ver se estava vivo. Tinha certeza que estava, porque não morria.
Mas quando percebi, o aquário estava vazio. O peixe não estava mais lá. Colei o rosto no aquário procurando-o, sem entender o que havia ocorrido. Foi só algum tempo depois que pude encontrar o peixe morto, estatelado no chão. Pulou do aquário, por um espaço da tampa entreaberta e morreu. Me disseram que pode ter sido por fome, ou porque viu um brilho do lado de fora -- sei lá. Sei que, no fim das contas, não estava era tão apático assim. Talvez só fingia.
Se suicidou. O peixe se suicidou. E assim, o que pode se dizer do nosso amor?

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Live Right

Deixa-te tomar pela falta de esperança.

Não sentimos falta do que jamais teremos, por mais sublime que possa ser; mas troque o jamais por talvez para ver toda a dor que se constrói sobre uma expectativa. Melhores serão os dias onde possamos olhar um cavalo de fogo, solto no pasto, belo e arredio, louco para ser domado e naturalmente lembrar do quanto não precisamos dele.

E jamais cometa o erro de achar que algo foi feito pra você. Pra você foi dada a água, o sol e o mar, e tudo aquilo que foi para todos igualmente feito. A única coisa que é tua e de mais ninguém é tua vida... Guarda ela e tudo que dela advém, e deixa que os outros façam o mesmo. Para de te preocupar com as feridas alheias e com as esperanças dos outros e faz das tuas feridas prioridade e das tuas esperanças, as poucas que restarem, motivação.

No fundo, todo mundo sabe onde pisa. E se alguém caiu é porque esqueceu de tatear o chão.

terça-feira, 3 de abril de 2012

(i)Moralidade



Se quer saber, meu bem, nem perca seu tempo tentando me convencer a desistir. Aproveite o pouco tempo que lhe resta para ir embora daqui... Procure um bote e diga que você é amiga do comandante, porque eu vou afundar com esse navio. E aí, quem sabe quando ele atingir o fundo, eu decida abandoná-lo. Mas só quando eu ver que nada mais resta.

Não desejo que entenda, nem que concorde comigo... Mas preciso que aceite que há pessoas que consideram felicidade mais importante que segurança. Pra mim é assim. Eu pulo, sempre. Muitas vezes, quase todas, não sei como, quando ou o que vai acontecer quando eu chegar ao chão... Aproveito pra pensar enquanto vôo, sorrindo... E quando tudo acaba, faço um sinal de que está tudo bem para todos aqueles que preferiram a certeza da terra firme, mas que nunca saberão o cheiro das nuvens.

Então vá, querida. Corra o mais rápido que puder e só pare quando estiver segura... Aí, deite no chão, retorme seu fôlego e desse momento em diante, viva como se eu nunca mais fosse aparecer na sua vida. Procure um lugar tranquilo pra morar; case com um homem rico, arrume um emprego onde não possam te demitir com facilidade e que lhe paguem bem. Faça um plano de saúde, guarde um terço de seu salário na poupança e aprenda, sempre, a gastar menos do que ganha. Coma de três em três horas, durma oito por dia e faça exercícios diariamente. E nunca, sob hipótese alguma, se permita tomar pelo pensamento de que sua vida poderia ser melhor do que é.

E mais: sempre que lembrar de mim, imediatamente sufoque minha memória com um travesseiro de plumas felpudas! Tente com toda a sua força contentar-se com pouco e me esqueça, porque a paz que você quer não existe no meu mundo e nunca vai existir. Construa a sua felicidade baseada na certeza que, não importa o que aconteça, seus eletrodomésticos lavam, passam, misturam, trituram e fatiam com perfeição e que jamais faltará seu iogurte preferido na mesa do café da manhã.

Se quer saber o que eu quero pra mim, eu digo. Quero ser feliz, e minha felicidade envolve estar em lugares que não conheço, caminhar em trilhas virgens e ver crepúsculos que ainda não foram fotografados. Envolve pegar o primeiro ônibus que tiver pra qualquer lugar, desde que seja pra viajar na janela. Envolve guardar metade do pão do café pra servir de jantar, na certeza de que ainda que tudo dê errado, vai estar tudo certo.

Pelo menos por um dia eu vou criar bodes na Índia, remar uma canoa em Veneza para dois apaixonados, descer do helicóptero de rappel numa aldeia africana pra ajudar os doentes. Quero construir minha própria casa. Fazer com minhas mãos uma mesa de cedro e bancos de jacarandá para enfeitar a sala. Não faço questão de nada do bom e do melhor, e nem que nada que eu fizer fique perfeito. Mas sempre buscarei a perfeição, movido pela certeza que jamais a alcançarei.

Essa é a questão. Pra mim, sempre haverá algo mais. Nunca vou me contentar com nada, senão com a certeza de que amanhã farei melhor do que fiz hoje. Então vá e não olhe para trás, sem permitir que o pensamento de como seria sua vida se você estivesse comigo seria.

Faça ainda melhor: sempre que se sentir infeliz, por um segundo sequer, vire-se em seu colchão de água, atrite sua face contra seus lençóis egípcios e tenha a certeza de que provavelmente estarei dormindo numa cama dura num lugar qualquer... Sorrindo, é claro, embebido em felicidade. Mas numa cama dura, lembre-se. É isso que importa: a cama é dura. Aliás, esqueça a parte da felicidade.

Agora vá. E lembre-se: contente-se com pouco e nunca tente conseguir mais.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Esse é o segredo.

Ouvindo: Switchfoot - This is your life

domingo, 25 de março de 2012

"Look again"


Cansado da conspiração mundial contra meus desejos, tirei a camisa suada da vida e joguei-me, preguiçoso, num sofá negro e sujo. Parei pra pensar em quanto me irritava ter acabado a lata de cerveja, e em quão cansado eu estava pra levantar o braço e gritar "Mais uma, garçom!". Era somente o que me incomodava. Naquele momento, tornei-me imune à poluição, à AIDS, à fome... Sentia pena de todas as pessoas que sofriam de Câncer, porque naquele momento, eu havia decidido que não mais seria afetado por ele. Eu estava cansado, e tão irritado por causa do problema da cerveja, que Câncer de Pulmão seria moleza pra mim.

Eu só queria uma lata cheia e gelada. Só isso. Podia ser de qualquer marca, qualidade, cor... Se, por um instante, essa merda de conspiração acabasse e a porcaria da lata se enchesse sozinha... Ah, eu estaria completo. Um maldito cilindro de alumínio acabara de destruir a minha pífia vida, e eu só queria outro. Cheio, de preferência. Deitei-me de lado, e passei a olhar diretamente pra razão de meu desespero, encarando-a. Respirava lentamente, enquanto pensava: "Enche, enche, enche...". O garçom, ignorando minha situação de vida ou morte, passou por mim sem nem ao menos me olhar. Desgraçado. Insensível.

Eu havia perdido toda a esperança. Se um desejo simples daquele não podia se tornar realidade, como diabos eu ia conseguir ser rico, bonito, poderoso? Olhei fundo, bem fundo, naquelas moléculas de alumínio aglomeradas e suadas, e pensei... Não tinha como. Foi aí, então, que eu desisti do mundo. Até mesmo Câncer de Cólo-retal seria melhor que desistir do mundo, por que pra quem tivesse isso, a cura traria de volta todo o prazer de viver... Pra mim, que já tinha jogado a toalha, nem mesmo a porcaria da cerveja adiantava mais. Eu estava no fundo do poço. Eu babava, meus olhos olhavam pro nada, como quem assistia Shoptime às 3 da manhã sem ter um centavo sequer para gastar.

Mas foi aí, quando nada poderia piorar, que veio a salvação. Num urro heróico, berrou meu tio: "VAMBORA!", me tirando daquele transe horrível. Eu levantei, assustado, mas um pouco feliz: pelo tom de voz dele, "IR EMBORA" era algo bem legal. Portanto, topei sem ponderar. Atirei-me, apático, no banco de trás do carro, torcendo por mim mesmo, enquanto procurava na maçaneta da porta o sentido da vida. Babando, é claro. Me tornei um retardado. Por perceber que todos aqueles anos vividos não faziam sentido, retrocedi voluntáriamente à idade mental de um bebê. Quando bebê, se eu chorasse, acho que minha latinha enchia. Sendo assim, pensei em chorar enquanto o carro andava pra acabar com todo esse nonsense, mas refleti e concluí que baixaria tinha limite.

Foi então que percebi que, embora meu tio estivesse correndo muito, afetado pela cerveja que eu NÃO bebi, a Lua nos seguia no mesmo ritmo, assoviando pra disfarçar... Olhei, perplexo. Até parei de babar e agir como retardado. Bilhões de pessoas no mundo e a Lua... ME seguindo?! Seguindo à mim? Curioso. Decidi olhar pra fora do carro, instigado por esse sinal de Deus. Pra minha surpresa, havia luzes dos dois lados da estrada onde nós passávamos, como postes bem altos, indicando o caminho... Não satisfeitos, eles haviam colocado também placas, dizendo com precisão o caminho mais seguro e a melhor velocidade. De tempos em tempos, passávamos por carros que aparentemente rondavam a estrada, no intuito de checar se estava tudo bem conosco. Tudo planejado.

Foi então que percebi que, justamente quando eu desisti do mundo, ele lembrou de mim.
Ou então, que a felicidade era simplesmente... Um outro ponto de vista.

"Tenacidade"


Aos 16, a conheci. Como sempre, ao vê-la chegar de mãos dadas com meu primo Judas, concluí que todas as mulheres lindas que eu tinha o privilégio de conhecer estavam tomadas ou desinteressadas por mim. Ou ambos, o que era ainda pior. Se apresentou a mim com o olhar baixo, tímido. "Carina", sussurrou na voz doce de quem desconfiava de seus próprios atributos. Eu, estonteado, tinha também o olhar baixo, mas de olhar o decote ousado da moça.

De tempos em tempos, desviava o olhar para seus olhos azuis, mas sem demora, tornava a olhar pro seu corpo. Na deixa que tive, quando súbitamente fui dizer meu nome em voz firme e austera (no intuito de manter uma imagem que não era a minha), engasguei no meio com um felpudo tapa nas costas, de meu primo Judas. Foi-se tudo por água abaixo. Mas, já havia ido desde meses atrás, quando os dois começaram a se ver. Em horas como estas, eu sentia pontadas de tridente nas costas. O Destino punha-se a me cutucar, como se testando minha audácia. Mas ao invés de ousar, tornava-me possuidor de grande Tenacidade. Característica esta que, segundo o dicionário, é a "capacidade de sofrer sem esmorecer". E, mais uma vez, estava eu entre a cruz e a espada. O que iria desenvolver naquela Páscoa? Abnegação, ou Audácia? Sofrer calado diante daquela musa, ou desafiar Judas e correr atrás dela?

Como tudo corria bem naquele feriado, a situação começou a piorar. Por vezes me perdia na imagem de Carina, e por horas pensava nela. Horas e horas. Na primeira noite, um sonho. Na segunda, outro ainda mais intenso. Na terceira, preferi nem dormir. Em desilusão, pedi a Deus a paixão daquela entidade em troca de anos de devoção a ele. Na cozinha de noite, a vi passando e olhando pra mim numa camisola de seda branca. E só. Ciente de que Deus era ocupado demais pra atender meus desejos joviais, retirei-me pro quarto conformado.

No Domingo, então, como de costume de nossa família, escondemos os Ovos de Páscoa por entre os cantos da casa. Numa coincidência extrema (ou não), Carina foi quem se encarregou de esconder o meu, enquanto eu escondi o dela. Fiz questão de deixar o dela bem fácil, mas definitivamente ela não foi igualmente gentil. Passei a tarde inteira procurando, e nada. Quando desisti da brincadeira e fui perguntar a ela o esconderijo do dito cujo, descobri que ela havia saído para "dar uma voltinha com Judas". Retirei-me pro quarto novamente conformado. Na manhã seguinte, ela iria embora, sem jamais saber de minha fixação por ela. Desta maneira, terminando de uma vez meu exercício de Tenacidade, a assisti sair olhando pra mim no dia seguinte. Eu me encontrava no auge da abnegação. Meus desejos eram nada. Eu poderia ser esfaqueado sem reclamar.

Anos depois, na Páscoa do ano em que eu completava meus 23, procurando pela casa uma garrafa de Conhaque, encontrei num canto escondido da adega uma embalagem plástica de cor azul, daquelas de Ovo de Chocolate Meio-Amargo. Olhei, olhei e olhei, tentando decifrar o enigma. Com o sangue subindo à cabeça, e uma impressão de que algo estava acontecendo, agarrei vorazmente a embalagem que continha somente restos deixados pelas formigas e a encarei. Carina havia escondido bem. Ao abrir, qual era minha surpresa ao ver um bilhete escrito em letras angelicais: "Passe no meu quarto às 2 da manhã... Vou deixar a janela aberta"? Abri a boca, arrepiado. Chutei a parede, soquei o assoalho, mas deixei impune o real culpado por aquela tragédia: eu. Diante da barulheira, ouvi a voz de minha esposa que eu nem amava tanto assim: "Achou, querido?". "Sim, Clotilde!", respondi.

Peguei a garrafa do velho conhaque e andei determinado até a sala. Ali, via Carina sentada de pernas cruzadas e uma aliança que já se encontrava em seu dedo há 5 anos. Tomado por uma força sobrenatural, ao me deparar com aquela mulher que, hoje, encontrava-se ainda mais linda que antigamente, caminhei em passos furiosos em sua direção, com a mão pronta para agarrá-la e levá-la para onde pudéssemos resolver aquela questão. De repende, senti as pernas pesadas. Olhei pra baixo, e me deparei com minha filha, já prestes a completar 3 anos, agarrada a meu joelho e me encarando. Oras, me rendi.

À noite, cheguei no quarto calado. Olhei para minha esposa que nem era tão bonita assim, beijei-a boa noite e vesti meu pijama de bolinhas. Irritado, concluí que talvez há 7 anos atrás quando Deus realizou meu desejo, seria melhor eu ter pedido audácia ao invés de Carina. Mas, agora, não havia muito o que se fazer.

Minha vida não era tão boa assim mas, ainda que não fosse nada demais, eu era o mestre da tenacidade.

Conformado, dormi.

terça-feira, 18 de outubro de 2011


         Matei o amor em uma noite fria de domingo. Desliguei os aparelhos enquanto dormia. O fiz beber veneno e, por via das dúvidas, empurrei-o de um arranha-céus, depois o afoguei num tonel de água suja sem nem dar pausas pra ver se ainda respirava. Com medo de ainda estar vivo, fiz muito mais. E quando acabaram-se os sinais de vida, fechei seus olhos e torci para que não os abrisse mais.
          Não podia conceber fazer isso mal feito, nem por um momento. Ainda não tolerava a idéia de que tive que fazê-lo, mas tendo aceitado essa incumbência, precisava ter certeza de que não mais me olharia com a esperança de viver.
         Assassinar algo tão belo tinha que ser feito de modo que jamais sentir remorso. Não podia pensar no que havia feito. Não podia correr o risco de vê-lo andar por aí e me lembrar de meu ato sádico. Não podia ver seus parentes, seus amigos; Não podia ler seu nome, nem mesmo ouví-lo. Não podia lembrar dele por um segundo sequer, ou tudo voltaria e com isso todo o sofrimento e a culpa de ter sido incapaz de salvá-lo.
         E eu juro ter tentado de tudo... Voltei ao fundo, busquei-o pelo braço, fiz todos os sacrifícios do mundo mas de nada adiantou. E quando não havia mais esperança, tendo de escolher entre minha dignidade e minha paz, escolhi minha paz; arrastei-me mais e mais, dei tudo de mim mas, mesmo assim, nada adiantou. Inconformado, beijei-lhe a testa e, diante de minha impotência, decidi retirá-lo de seu sono e encurtar seu sofrimento.
         Chorando, afaguei-lhe o rosto apático e não pude evitar de lembrar de como era bom tê-lo por perto, de toda felicidade que me trouxe e do pedaço que me tirou quando se afastou; Lembrei de tudo que havíamos feito juntos, dos momentos mais marcantes, das carícias apaixonadas que trocamos e de como mudamos.
         Mudamos demais, eu acho. Eu e ele. Para melhor, mas ainda assim, tornamo-nos diferentes... Aprendemos muito um com o outro, mas sofremos para isso e ainda que parecesse que só evoluímos, era difícil reconhece-lo nesse momento. Não me dispensava mais aquela devoção. Não mais parava para me ouvir falar. Nos perdemos um do outro, eu acho.
         Assim, o matei. E, se não bastasse a culpa de ter que mata-lo, ainda sentia a tristeza de ter que viver sem ele. Quis fazer um funeral digno: primeiro, decidi cremá-lo e jogar as cinzas no mar... Mas fiquei com medo que sentisse calor demais. Então achei melhor enterrá-lo, mas fiquei com medo de que se sentisse sufocado, confinado... Então decidi deixa-lo ali mesmo, intacto, inalterado, deitado sob o luar e o banho de estrelas, pois era verdadeiramente onde pertencia.
         Então segui minha vida, austero, resoluto, confiante, guardando a culpa comigo, sem dividí-la com ninguém; Muitas vezes tentei esquecer do que fiz, mas uma força estranha e forte mudava meus caminhos e sempre me fazia passar por lá para deixar-lhe algumas flores. E, ainda que tivesse certeza do que havia feito, ficava o observando atentamente, ali, deitado.
         Torcia para que continuasse morto... Mas nunca consegui apagar a esperança de que, um dia, abriria novamente os olhos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"Alto Mar"

Vivo a vida como se estivesse naqueles programas do tipo “Pesca e Companhia”, que a gente assiste num domingo de sol quando a noite de sábado não deu certo e já estamos cansados de dormir. Não importa o dia, o desenrolar é sempre o mesmo: o cara faz um esforço danado, pega um peixe, comemora por 5 minutos e depois joga de volta na água. E começa a pescar novamente.

Assim também faço eu e muitas outras pessoas: cavamos nosso próprio buraco para depois sair dele, experimentando assim uma sensação sórdida de vitória que nunca existiu. Comemos muito e engordamos, para depois nos submetermos à dietas e nos sentirmos felizes ao emagrecer. Gastamos todo nosso dinheiro, entramos no vermelho para depois cortarmos diversos gastos e, voltando à normalidade, nos acharmos os administradores do ano. Estamos bem, e jogamos tudo pela janela só pela sensação de felicidade que teremos ao pegar tudo de novo. Brinco eu, assim, de estar e depois voltar à estaca zero.

Torno-me, então, um grande trapaceiro, que passa as pernas em si mesmo. Acho que por covardia, me submeto sempre aos mesmos problemas, os quais já sei como resolver, e às mesmas conquistas, aquelas que já não me satisfazem tanto. Marco passo. E, sem saber exatamente por que, nego a essência do que sou: ser inteligente, com grande talento para a evolução. Na ausência de provações criadas pelo mundo, eu recrio antigos cenários de batalha e os vivo novamente como um teatro que retrata épicos medievais.

Mas, agora, aos quase 25, acho que cansei.

Decidi descer da esteira e caminhar na praia, ainda que doam minhas pernas. Tem muita coisa pra fazer, muito pra se ver e pra se viver. Chega de curtir a vida como um eterno adolescente. À partir de agora, vou criar problemas de verdade, e não simulacros baratos. Se for pra me endividar, vai ser montando meu próprio negócio; se for pra me quebrar, vai ser saltando de paraquedas; se for pra chorar, quem sabe, vai ser porque meu casamento não deu certo.

Afinal de contas, estou esperando o que? Meus amigos de bar pararem de falar de choppada? Meus companheiros de trabalho pararem de trair as esposas? Não. Quem tá pronto, vem comigo... Quem não tá, bom, aguardem o próximo messias.

Já é hora de perdoar tudo que passou e evoluir. Meu casulo já está apertado, e eu tenho mais o que fazer do que rastejar.

E os peixes que me perdoem.